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Relato da percepção do cotidiano

Postado por Mayara Silva sexta-feira, 17 de setembro de 2010 1 comentários

       O portão de alumínio quase me ensurdece os ouvidos. Caminho uns passos e ouço o barulho do mar. Está calmo hoje, penso. Então observo a rua de terra. Batida, poeirenta, quem sabe simpática por me deixar pisar nela todos os dias. A direção pra onde olho é o rude chão, de onde, penso eu, já passaram pés de todos os lugares, tamanhos e importâncias. Pés limpos, descalços, sujos de areia, de terra, calçados com um chinelo arrebentado ou pelo tênis maneiro do rapaz, e pela sandália bacana da menina. Consigo imaginar também aqueles pés que parecem sérios, cheios de graxa, e tudo o mais. Recordo-me daquelas cenas de filmes e novelas do moleque engraxate deixando o tênis do moço sempre belo e lustroso, e ganhando uma bela recompensa por isso. Coloquei então na cabeça: Moços com sapatos engraxados devem ser importantes!
       As marcas dos pés despertam meu interesse. Pés miúdos, que mal aprenderam a andar, marcam o chão que piso, assim como pés que caminham em passos largos: Uma corrida, talvez...? Ficaria horas analisando as pegadas de sujeitos desconhecidos, não fosse a pressa de pegar um ônibus. Quase piso no resultado de uma combinação de comida, restos mortais de um rato e areia. Um cocô de cachorro, suponho. Entro no chão móvel do meu meio de transporte diário. Chicletes, copos e pacotes plásticos contextualizam o chão de ônibus.

       Pela janela avisto aquelas pessoas simples, que passam por você e soltam aquele sonoro: “Boa tarde!”, é uma pena estar passando a alguns quilômetros por hora. A poeira continua, deixando a visão fosca para as fachadas das casinhas de madeira ao longo da estrada. Vejo chapéus de palha, enxadas na mão, palheiros na boca. Incrível como a simplicidade me comove! Mais adiante vejo mais pés miúdos, dessa vez correndo em disparada, para não perder o ônibus escolar. Um olhar distante me fita, e com o queixo apoiado na janela, presencia o acontecimento que é o ônibus passar por aquelas bandas, empoeirando os lugares por onde avança. Enfim chega o chão duro e preto traçado de amarelo. Agora só as árvores me acompanham ao longo da estrada. Tenho sono e acabo adormecendo.
       Ao abrir os olhos, já é a cena urbana que se mostra pela janela. Desço do meio de transporte coletivo, e quando piso no chão, já estou em outra cidade. Pressa, correria, distanciamento. E aí já não consigo analisar os pés que se põe no meu caminho. Agora eles não deixam marcas na areia. As pessoas estão muito ocupadas para se preocupar com qualquer coisa. A poeira já não é poética, é irritante. As pessoas já não dizem um coletivo Boa tarde, sussurram entre elas sobre seu modo de vestir. Aumentam o número de sapatos engraxados, mas agora eu não os acho tão importantes. Descubro que meus olhos podem enxergar mais do que o 'arreio' cotidiano me permite. Mas às vezes enxergar tanta hipocrisia, falta de compaixão, descompromisso e ignorância sem poder fazer nada, não fazem bem pra retina. Não pra minha.


(Exercício desenvolvido para a matéria de Redação 3, sob orientação do prof. Guilherme Diefenthaeler)

O escafandro e a borboleta

Postado por Mayara Silva 0 comentários



Como se sentir estando preso dentro de si mesmo?
       Incrível como temos necessidade de comunicação. A simplicidade de um gesto comunica. Palavras comunicam. Até um silêncio acompanhado de uma expressão facial comunica. Mas e se algo o privasse de poder usar artifícios gestuais, de poder pronunciar palavras, de ter alguma expressão?  Eu tentaria me comunicar de qualquer jeito. E foi exatamente isso que fez Bauby, com seu incrível meio de comunicação, chamado olho esquerdo. Imaginação, memória, espírito criativo e vontade de escrever sobre o cotidiano, permeiam a vida de um jornalista, e quando nada disso pode ser realizado, a metáfora ‘escafandro’ cabe como uma luva. Debater-se dentro de si, gritar, espernear e os outros só enxergarem o seu olho mexer, é assustador e nos faz refletir se estamos fazendo o possível para transmitir o que pensamos, ou o que desejamos que os outros saibam.
A capacidade de percepção, a paciência, e a sensibilidade mostradas pelo editor, trazem à tona os atributos para se tornar um bom jornalista, o que não acontece com muitos dos que hoje atuam nas redações de todos os lugares. Os olhos se tornaram a única janela que mantinham Bauby em contato com o mundo, e foram os olhos que o mantiveram vivo, pela capacidade que tinham de substituir qualquer palavra que pudesse ser dita.  Aprender a observar, notar, analisar, prestar atenção em todos os detalhes fazem parte da construção dessa profissão, e quem não conseguir perceber isso, poderá ficar preso dentro do escafandro, sem poder sequer encontrar um meio de dizer ao mundo que está aqui.


(Exercício sobre o filme “O escafandro e a borboleta”, desenvolvido para a matéria de Redação 3, sob orientação do prof. Guilherme Diefenthaeler.)

Futuro.

Postado por Mayara Silva quarta-feira, 25 de agosto de 2010 1 comentários


Contar histórias reais é o que me fascina.
Gosto de lidar com pessoas reais, de carne, osso, e sangue nas veias. Quero contar a história da prostituta da esquina, que batalha diariamente pra sustentar seu filho. Contar sobre a história sofrida daquele ambulante simpático de nome engraçado e tatuagem no braço. Ou talvez abordar aquele velho mendigo que diz que é dono da rua, e que todo dia me abre um sorriso banguela. A vida real me interessa muito mais do que a ficção.
Não que a protagonista daquele filme premiado seja menos importante, ou que aquele garoto rico também não seja um cidadão. Mas a idéia de passar uma vida inteira sem contar histórias surpreendentes, e nem transmitir nada ao mundo, não me agrada. Não dá pra fingir que tais personagens não existem, e que as cidades são feitas apenas de prédios, carros, mulheres elegantes de salto alto, e jovens parecidos com os da “malhação”. O fato é que eu não escolhi o jornalismo. Fui escolhida por ele. Tenho verdadeira paixão pela terra que piso, pelo ar que respiro e pelas pessoas que ali transitam. Sou fascinada por gente. Preciso estar perto delas. Sê-las, vê-las, senti-las. Gosto de rostos. Gosto de vozes, muitas vozes, um milhão delas até ensurdecer-me os ouvidos. Preciso de barulho, de tumulto, de berros, buzinas, apitos, e trovões. Preciso ver gente sorrindo, brincando, caminhando, correndo e vivendo. Essa é a beleza de ser jornalista: Poder estar em contato com a realidade do mundo em que vive, e contar histórias verdadeiras, sem maquiagem.
Sinceramente, não espero que meu futuro seja glorioso, cheio de conquistas e reconhecimento. Escolhi um caminho onde haverá pedras, espinhos e farpas em número muito maior que o luxo e o glamour. Porém, escrever sobre gente de verdade me agrada muito mais do que passar a vida toda enclausurado numa ilusória realidade, realidade essa que mora na mente de quem acha que vive, apenas pelo fato de estar respirando.

Lispector minha de cada dia.

Postado por Mayara Silva quinta-feira, 22 de julho de 2010 0 comentários


O rosto forte da autora que me inspira
        Quando sinto que o meu ciclo de pensamentos não flui com velocidade e coerência, recorro a ela. Não se pode apenas ler Clarice Lispector. Nem se consegue compreender suas metáforas, idéias e propostas apenas separando trechos de seus livros e passando os olhos em cima de seus escritos. Clarice é pra sentir. E ela compreende a alma tão a fundo que chega a doer. Quando enfim li a obra “A hora da estrela” (LISPECTOR, Clarice. Editora Rocco, 1977), pude notar o peso do livro que carregava nas mãos. Uma história densa, humanizada, que retrata o ontem e o hoje. Apaixonei-me pela torta trajetória de Macabéa, desde a primeira linha. Então, resolvi ler “Perto do coração selvagem” (LISPECTOR, Clarice. Editora Rocco, 1943). As palavras caminham naquelas páginas, e aquela história dá voltas na linha do tempo e da compreensão, a ponto de embaralhar a mente de leitores desavisados. Ela me inspira todos os dias, e a cada obra que descubro, julgo fantástica, brilhante, e assim acabo dando esse título a todas que leio. Mas a ucraniana erradicada no Brasil conseguiu me surpreender com a obra “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” (LISPECTOR, Clarice. Editora Rocco, 1969). A história narra a história da imperfeita Lóri , uma jovem que encontra sua personalidade ao se apaixonar por um professor de filosofia, que só a aceita depois que ela compreende quem realmente é, e que o mundo não gira em torno de suas próprias vontades. O desenrolar de suas histórias soa extremamente simples, mas possuem um peso e uma grandeza reservados apenas para os gênios. Atualmente estou lendo “Felicidade Clandestina” (LISPECTOR, Clarice. Editora Rocco, 1971). São vários contos reunidos, sobre diversos assuntos. Quero dizer, não são contos, porque segundo a autora, seus livros não se encaixam em gêneros, porque eles não interessam. Não interessam mesmo, Clarice. Você está acima deles, por isso não ousaria jamais a enquadrar.
“Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.”
(Menino a bico de pena - Felicidade Clandestina)

Felicidade Realista

Postado por MaySilva terça-feira, 13 de julho de 2010 0 comentários

"A princípio bastaria ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos são ainda mais complexos. Não basta que a gente esteja sem febre: queremos, além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis.
Dinheiro? Não basta termos para pagar o aluguel, a comida e o cinema: queremos a piscina olímpica e uma temporada num spa cinco estrelas.
E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza e fazer sexo de vez em quando. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar a luz de velas de segunda a domingo, queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro jeito. É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma forma mais realista."

Martha Medeiros.
Fragmento retirado do texto "Felicidade Realista".

Tiros em Columbine

Postado por Mayara Silva quinta-feira, 1 de julho de 2010 0 comentários




O trecho acima foi extraído do filme ‘Tiros em Columbine’ (Bowling for Columbine, 2002) de Michael Moore. O vídeo é uma breve explicação em desenho animado sobre a história do medo nos EUA. A descrição acima soaria até fofa, se não fosse cruel. O filme/documentário gira em torno da tragédia no estado do Colorado, mais precisamente na escola de Columbine High School. No ano de 1999, dois jovens munidos de duas escopetas, uma pistola semi-automática e um rifle de assalto de 9 mm assassinaram treze colegas e um professor, e logo depois se mataram. O filme trata do fascínio dos norte-americanos em possuir armas. Tiros em Columbine foi tão premiado quanto severamente atacado, até porque Moore critica abertamente seu próprio país, levantando a discussão sobre a violência a âmbito mundial.

É estranho?

Postado por Mayara Silva sábado, 26 de junho de 2010 1 comentários


        Já era senhor de idade, uns sessenta, talvez. Os pés descalços, a touca rasgada e a camiseta de promoção virada do avesso, conferiam-lhe o rótulo de mendigo. Empurrava um gigante carrinho com papelões, caixas, entulhos e espelhos quebrados. Quase diariamente estacionava seu pesado meio de vida na praça, e sentava para descansar. A boca quase sem dentes, sorria abertamente, carinhosamente, gratuitamente. De uma simpatia e conversa indiscutíveis, ele contava que quando era mais moço morava ali naquela rua, e era dono de muitos terrenos, por isso todos o respeitavam. Depois ria novamente, o que deixava as pessoas apreensivas pelo seu estado de sanidade. Ele nem ligava, acelerava os passos, e avançava cidade adentro, em busca de novos entulhos. “Um agradinho pra moça?” disse aquele homem tatuado, quando oferecia ao enamorado, brincos de ferros retorcidos que ele mesmo fazia, a fim de pagar as contas e o almoço do dia seguinte. Sem obter resposta, o homem viu o casal sair em disparada, com a sensação de que ele pudesse os atacar em plena sexta-feira, numa praça lotada de gente. O hippie sorriu e balbuciou: -jovens... Mas na verdade, seu coração apertou, porque lembrou-se de quando tinha uma namorada, de quando recebia amor, de quando ainda era considerado gente. Do outro lado, um rapaz calçava um par de tênis muito sujo, que aparentava estar ainda mais sujo, pelo fato de ser usado sem meias. Os braços arrepiados do frio, a bermuda pesando toda sua umidade. Mesmo assim, o rapaz alto e magro olhava para o céu. Olhava para cima como se alguém lá do alto o pudesse ver e ouvir. Então fechou os olhos e orou em voz alta. Nunca tinha feito aquilo em público, mas as novas situações pediam algo drástico. Ele pediu para que pudesse apenas comer. A última coisa que seus dentes tocaram foi em um pão seco que de tão duro quase lhe arrebenta as gengivas, já fracas pela falta de escovação. Pediu também um lugar bom pra dormir, já que as frias noites da cidade o enfraqueciam os pulmões. Não se esqueceu de pedir pelos amigos, já que sempre recebeu apoio, e caso o cara lá de cima quisesse ajudar, teria que ajudá-los também. Achou suficiente e parou. Abriu os olhos, e em volta as pessoas o olhavam com ar de desprezo e medo. Não sou louco, ele pensava. A menina com jeito de colegial fitava aquele grupo com tamanho ar de superioridade, que seu nojo era transmitido a quilômetros. A senhora de saias passava longe. O cara de terno quase esbarrou quando falava ao celular, mas logo depois se limpou inteiro, já que aqueles homens fediam tanto que poderiam transmitir alguma doença.
Somos como vocês, o rapaz pensou. De carne, osso e pecados, pensou de novo. Agora ele respirava ódio. Nem parecia o rapaz simpático de outrora, que carregava as sacolas de mercado da mãe e ajudava o pai no trabalho. A bebida, as drogas, as brigas, o HIV. A mãe expulsou chorando, o pai deu-lhe um soco que sangrou. Mas sangrou do lado de dentro, onde ninguém poderia conter a hemorragia. Agora ele estava ali, parado feito uma estátua, cheio de lágrimas nos olhos, frente a um povo que só conseguia o evitar e desprezar. As pessoas se dispersaram, olhando apreensivas para aqueles estranhos que por algum motivo habitavam o mesmo mundo que elas. O rapaz concluiu a oração com o sinal da cruz, e foi em busca de um bom lugar pra dormir. O hippie sentou-se no banco, esperando o avanço das horas, para poder dormir ali mesmo, em cima de seu confortável papelão. Os estranhos então repousaram sob o atento olhar daqueles que contraditoriamente se julgam normais. 

* Livremente inspirado nos adoráveis estranhos noturnos que transitam nas imediações da Praça Nereu Ramos, no centro de Joinville.

Sobre isso aqui!

Postado por Mayara Silva sexta-feira, 4 de junho de 2010 0 comentários

Como sou principiante por aqui, inicio o blog Livres anseios dizendo que publicarei tanto textos de minha autoria - como crônicas e pensamentos - , quanto textos de outros autores que achar interessante. Também é um espaço para divulgar as matérias e reportagens desenvolvidas na faculdade de jornalismo, além de um espaço para imagens, vídeos e qualquer outra coisa que exista entre o céu e a terra (na qual eu me interesse, é claro). Portanto, como o próprio nome indica, é um espaço para os livres anseios dessa acadêmica que vos fala.

Seguindo essa linha de livres publicações, divulgo uma lista de filmes que abordam o tema jornalismo, indicados pelo professor Gleber Pieniz, do Bom Jesus Ielusc. Para quem procura mais sobre o tema, Gleber ainda indicou o livro Jornalismo no cinema, de Christa Berger (Porto Alegre: UFRGS, 2002).


Cidadão Kane (Orson Welles)
A montanha dos sete abutres (Billy Wilder)
A doce vida (Federico Fellini)
Blow up - Depois daquele beijo (Michelangelo Antonioni)
Terra em transe (Glauber Rocha)
O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla)
Primeira página (Billy Wilder)
O passageiro - Profissão repórter (Michelangelo Antonioni)
Todos os homens do presidente (Alan Pakula)
Rede de intrigas (Sidney Lumet)
Reds (Warren Beatty)
Os gritos do silêncio (Roland Joffe)
Os donos do poder (Sidney Lumet)
A era do rádio (Woody Allen)
Nos bastidores da notícia (James Brooks)
Ele disse/Ela disse (Ken Kwapis e Marisa Silver)
O jornal (Ron Howard)
Assassinos por natureza (Oliver Stone)
O quarto poder (Costa Gavras)
Mera coincidência (Barry Levinson)
Bem-vindo a Sarajevo (Michael Winterbotton)
Velvet goldmine (Todd Haynes)
O informante (Michael Mann)
Quase famosos (Cameron Crowe)
Crônica de uma certa Nova York (Stanley Tucci)
Hype! (Doug Pray)
Ao vivo de Bagdá (Mick Jackson)
Borat - O segundo melhor repórter do glorioso país Casaquistão viaja à América (Larry Charles)
Fahrenheit - 11 de setembro (Michael Moore)
Tiros em Columbine (Michael Moore)
Off screen (Pieter Kuijpers)
Boa noite e boa sorte (George Clooney)
 

Espetáculos proibidos nas ruas de Joinville

Postado por Mayara Silva sábado, 29 de maio de 2010 2 comentários



Mayara Francine da Silva e Vivian Carolini Braz


(Reportagem desenvolvida para a disciplina de Redação 3, sob orientação do professor Guilherme Diefenthaeler.)


Trinta segundos e o sinal se fecha. Para os que sobrevivem da arte de rua, significa o início do espetáculo. A cortina se abre. Dela podem sair estátuas-vivas, malabaristas e pirofagistas, que utilizam os metros de asfalto como o único palco disponível. Tais personagens já fazem parte do dia a dia de quem passa pelas ruas centrais de Joinville. Mas manifestações artísticas desse gênero são vetadas por lei na cidade do festival de dança. O gerente de permissões e concessões da Conurb, Humberto Mafra, explica que usar os sinais para tais atividades pode atrapalhar a atenção dos motoristas e tumultuar o trânsito. Por isso, a proibição. Mafra cita as leis 175/2004 e 84/2000 e afirma que, quando o órgão encontra alguém fazendo apresentações nos semáforos, orienta para que deixe o local. Do contrário, multa.
Como a maioria dessas pessoas não têm outra fonte de renda, a Secretaria de Assistência Social criou um projeto que promete oportunidades para resgatar a cidadania de quem vive nas ruas. Batizado de Porto Seguro, o projeto coordenado por Márcio Sell atende 191 pessoas, promovendo ações como encaminhamentos para tratamento de dependência química, inclusão em programas de alfabetização, inserção no mercado de trabalho, albergue e, em alguns casos, fornecimento de cestas básicas. As atividades são realizadas na sede da secretaria, no bairro Bucarein. Marcio afirma que a maioria dos artistas de rua não mora em Joinville. “Eles ouvem as orientações, mas não se submetem ao nosso acompanhamento.” O último caso dessa natureza atendido pelo projeto foi em 2007, e, desde então, a pessoa não foi mais vista nas ruas.


Uma graça em troca de um sorriso


O palhaço aparece para fazer seu número com malabares. Nos míseros segundos de apresentação, carros buzinam, motoristas fingem falar ao telefone, vidros da janela se fecham repentinamente, e poucos ajudam o homem vestido com meias coloridas, chapéu de bobo da corte e nariz vermelho. O personagem que traz cor ao semáforo da rua Padre Carlos, no Centro, é o gaúcho Luciano Himmer, 33 anos, dez dedicados à arte. Quando se desfaz de seus trajes, a feição muda de alegre para cansada, e ele explica que havia muito tempo não parava nos sinais. “Só voltei porque preciso pagar o aluguel.” Quando menino, a diversão era assistir aos episódios do seriado “Os Trapalhões” e dar risada com as aventuras de Dedé, Didi, Mussum e Zacarias, seus ídolos de infância e a quem atribui sua admiração pelo circo.
Luciano encontrou nos espetáculos circenses uma forma de unir talento e trabalho, ganhando dinheiro com aquilo que gosta. “Cresci com a arte, faço teatro de escola desde os 8 anos, e sempre estive envolvido nesse meio”, diz. O olhar firme e os argumentos concretos indicam que ele fala como profissional. Aliás, ninguém pode dizer que o trabalho realizado pelo Grupo Lúdico Teatral, fundado por Luciano, não é sério. Acompanhado pela esposa e por uma amiga, o artista atende empresas, eventos e aniversários de crianças, ganhando muito mais, aí, do que nos sinais. Fundado em 2009, o grupo pesquisa e desenvolve técnicas circenses, aliadas à música e ao teatro. Além do malabarismo, eles realizam apresentações com pirofagia, monociclo e perna-de-pau, incluindo pinturas no rosto e esculturas em balão, quando o evento pede. “Já temos uma sede própria, onde vendo objetos e pretendo dar aulas de circo”, diz, entusiasmado. Recentemente, o grupo foi visto pelo público no desfile de 159 anos de Joinville, representando a Rádio Mais FM, no Dia das Crianças do Supermercado Angeloni, e no aniversário da Galeria 9 de Março, em Joinville.
Por meio de sua arte, Luciano já circulou por outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, e pelo menos uma vez fora do Brasil, no Uruguai. Porém, diz que o único lugar em que teve problema ao expor seu trabalho foi Santa Catarina. “Houve uma vez em que tomaram minhas claves e me humilharam. Não precisavam ter agido assim, achei desumano, uma falta de respeito.” Luciano é contra a proibição aos artistas de rua nos semáforos e salienta que o que faz deve ser visto como um trabalho. “Não sou pedinte. Tem gente que não faz nada e pede. Eu faço minha arte e não obrigo ninguém a dar dinheiro. Se ganhar ao menos um sorriso, já me sinto melhor”, diz.
Formada em artes cênicas com habilitação em interpretação teatral pela faculdade de Artes do Paraná (FAP) e mestranda em teatro pela Udesc de Florianópolis, Daiane Dordete também discorda da legislação municipal. Daiane reconhece o caráter artístico das apresentações realizadas nas vias públicas por pessoas que não são profissionais. Diz que não há como generalizar a qualificação de “artistas de rua”, que abrangeria desde um violeiro cego que encontrou uma forma menos burocrática de se sustentar até os malabaristas e estátuas-vivas. Ela compara essa expressão artística com alguns formatos americanos. “Como os stand-up comedies, que viraram febre nos bares e teatros. Ou será que um modelo americano é considerado mais artístico que o malabar ou a estátua-viva?”
Daiane observa ainda que não há uma cultura voltada ao consumo de “arte local”, apenas aquela mostrada pela televisão, global, nacional e importada. “Toda manifestação artística tem demanda de público e clientes. Há público para todos, profissionais e amadores, acadêmicos e populares.” Ela comenta que falta divulgação e difusão desse tipo de produção – os profissionais recebem algum incentivo via projetos de lei, mas ainda é pouco e para poucos. “Talvez o mais rápido seja ir para a rua mesmo. Ou ser artista só por diversão, no tempo livre”, completa.
A Fundação Cultural de Joinville (FCJ) reconhece que os semáforos abrigam muitos artistas populares e lembra até de alguns casos recentes de performances levadas às ruas por artistas profissionais mais conhecidos, como Carlos Franzói. Porém, questiona a falta de segurança adequada para esse tipo de intervenção de forma sistemática. “Entendemos que é preciso pensar na questão da segurança, e também na livre expressão. O assunto não se esgota em uma frase ou em uma regulamentação”, ressalta a FCJ, por meio de sua assessoria de imprensa. Uma saída para os artistas que se interessem em profissionalizar seu trabalho, segundo a fundação, é fazer a inscrição de um projeto no Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura (Simdec), que contempla projetos voltados à cultura popular. A assessoria diz que, no lançamento da edição 2010, representantes da arte circense buscaram informações sobre como proceder, e agora a questão depende da iniciativa dos grupos/artistas, assim como de projetos bem fundamentados.


Um guerreiro prateado


Seu nome é Jonny, e das 9 da manhã à 1 e meia da tarde ele é feito de prata. Não tem um cavalo, nem uma armadura medieval, mas enfrenta monstros muito piores que os da Idade Média. Pintado dos pés à cabeça com tinta da cor do minério, o homem finge ser feito de parafusos, de fios eletrificados, e simula precisar ser abastecido por fluidos e óleos. Jonny de Oliveira, 33 anos, é estátua-viva e faz da rua seu palco. Natural de São Francisco do Sul, mora em Joinville há 17 anos e trabalha há 12 com arte nas ruas. Atua de segunda a sábado na Rua Mário Lobo, no Centro, e está preparado para encarnar mais de 70 personagens, como Hades, Poseidon e o Cristo Redentor. “A maioria é da mitologia grega”, diz, orgulhoso.
Jonny não tem outra fonte de renda, além das ruas. Conta que o desespero o levou a procurar essa forma de ganhar dinheiro. Seu filho havia acabado de nascer, o rapaz estava desempregado e precisava sustentar a criança de alguma forma. Iniciou seu contato com a arte por intermédio de um amigo. “Ele perguntou se eu queria trabalhar, eu disse que sim, nem perguntei o que era para fazer.” Nunca lidou com teatro, aprendeu tudo o que sabe a partir da influência de seu amigo, natural de Minas Gerais. Apesar da família de Jonny aceitar sua profissão, ele diz que não deseja que o filho siga a mesma carreira, em função do preconceito que sofre. “Sou vítima do preconceito todos os dias, é uma coisa que vem de berço no brasileiro. O povo já é educado com o preconceito, mas eu finjo que não existe.” Ele se revolta quando relata que, a cada 10 pessoas que passam por ele nos semáforos, cinco criticam, duas ajudam e três são indiferentes.
O artista lamenta que as autoridades não vejam sua atividade como arte. “Dizem que é constrangedor um cidadão estender um chapéu para um carro num semáforo. Para mim, constrangedor é ver o próprio filho pedir comida e você não poder dar.” Ele afirma que alguns políticos já lhe prometeram cursos, ajuda financeira e emprego com carteira assinada, mas nada fizeram. “Fui enganado, cortaram minha luz e me despejaram de casa. Depois vieram com cestas básicas.”
Jonny diz que pensa em abandonar o trabalho nas ruas neste ano. “Não sou mais um garoto.” Ele afirma que, há 12 anos, a população demonstrava mais interesse, tinha mais curiosidade. “Quanto menor a cidade, maior o espanto”.